Da nascente ao renascimento

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Por Raphael Favilla  •  17 de Junho de 2021


A prática esportiva aliada à vontade de vencer é capaz de transformar não somente corpos e mentes, mas também histórias.


Sabe aquele famoso ditado de que uma porta fechada pode levar a outras se abrirem? É mais ou menos assim que começam muitas biografias de atletas paralímpicos, famosos, anônimos ou de coração.


Como em quase todo ditado popular, as velhas máximas passam de geração em geração nos trazendo um apontamento, uma conclusão ou moral, geralmente em sentido figurado. Mas quando conhecemos a história do tenista Ymanitu Silva, percebe-se que o provérbio pode ganhar contornos de literalidade.


Em um fatídico dia do hoje longínquo ano de 2007, Ymanitu entrava de pé em seu carro pela última vez. Naquele momento em que ligava o motor e batia a porta do automóvel, o catarinense não sabia que outra porta também se fechava em sua vida.


Um grave acidente automobilístico viria a dividir não só sua coluna cervical, mas sua vida em antes e depois da tragédia.


Quando a equipe de socorro resgatou Ymanitu dos escombros, abria-se ali a porta de uma rotina totalmente impensável até então. E que culminaria em uma vida profissional de dedicação ao esporte, a conquista de dezenas de títulos e o reconhecimento mundial.


A água em seu estado líquido tem como uma de suas características a capacidade de adaptar-se frente aos obstáculos para conseguir seu rumo. Assim formam-se os rios, que correm das nascentes até desaguarem nos mares, muitas vezes desviando de sua rota natural mas sempre seguindo adiante.


Por acaso, ou não, Ymanitu significa Deus das Águas em tupi.


Como um deus da água, Ymanitu precisou de muita força de vontade para readaptar-se. Diagnosticado como tetraplégico há quatorze anos após o acidente, hoje o catarinense de 38 anos acaba de carimbar o passaporte para disputar a segunda Paralimpíadas de sua carreira.


Depois da Rio 2016, chegou a vez de Tóquio para Many, como é chamado pelos amigos.


O antes


Natural de Tijucas, na Grande Florianópolis, Many começou a prática esportiva ainda na infância.


“Minha família sempre priorizou o esporte. Quando tinha dez anos, meus pais me colocaram numa escolinha de tênis aqui na minha cidade, e na hora não quis mais saber de futebol. Foi amor à primeira vista. Minha rotina era ir pra escola de manhã e depois passar o restante do dia no clube, batendo uma bolinha. Vivíamos o auge da Era Guga, e coloquei na cabeça que me tornaria um atleta profissional. Mas aos 17 anos, os altos custos do esporte fizeram com que eu abandonasse meu sonho. Justamente na época de transição do juvenil para o profissional, entrei na faculdade e passei a ser um atleta de fim de semana. Comecei a cursar Farmácia, para tocar os negócios da família. Meus pais tinham uma pequena drogaria. Mas a paixão pelo esporte continuava, e sempre que podia praticava o tênis nas horas vagas”, lembra.


O acidente


“Foi quando aos 24 anos sofri um acidente de carro e fiquei tetraplégico. Naquela ocasião, fiquei perdido, sem chão. Durante sete meses fiquei recluso, sem falar com ninguém. Até que um amigo me convidou para conhecer o Sarah em Brasília”, conta Ymanitu.


Sarah é como popularmente chamam o Hospital Sarah Kubitschek, famosa rede de unidades hospitalares destinadas ao atendimento de vítimas de politraumatismos e problemas locomotores, voltada para a reabilitação dos pacientes.


“Lá, tive a chance de conhecer vários esportes adaptados”, continua. “Naquela época tive a oportunidade de conhecer aqueles que considero meus padrinhos no esporte. A Rejane e o Wanderson. Eu tive muita sorte”.


Rejane Cândida da Silva foi a primeira mulher do país a competir no tênis em cadeira de rodas. Nascida em 1976, ela teve poliomielite aos cinco anos de idade e ficou paraplégica. Medalhista na última edição dos jogos Parapan Americanos, Rejane já viajou para cinco mundiais e está na seleção brasileira desde 2006.



Rejane foi pioneira no tênis em cadeira de rodas no Brasil e campeã do Parapan de Toronto


Já Wanderson Cavalcante é coordenador do departamento de Tênis em Cadeira de Rodas da Confederação Brasileira de Tênis. Formado em educação física, hoje é uma das maiores referências do país nesse tipo de treinamento.


“Os dois acabaram montando uma clínica de tênis adaptado e eu participei, em junho de 2008. Quando sentei na cadeira e bati minha primeira bolinha, vi que levava jeito. Voltei animado pra Santa Catarina, iniciando os treinamentos em um projeto de parceria entre a Federação Catarinense de Tênis e a UFSC. Ainda no final daquele ano, participei do meu primeiro torneio, em São Paulo. Foi muito engraçado, porque a vontade de jogar era tanta que fui sem treinamento para a capital paulista de ônibus, com meu amigo Charles Teixeira. Chegando lá, perdi logo na estreia para o pior ranqueado da competição, com um duplo 6-1. Mas fiquei feliz, porque ali descobri o rumo que queria trilhar na vida. E por ganhar a consciência de que não seria um caminho fácil”.


O depois


Perseguindo um antigo desejo, dali em diante Many não parou mais.


“Foi como reviver os sonhos de criança de ser um atleta profissional. Em 2014, depois de uma classificação funcional, entrei na categoria Quad. Desde então passei a fazer parte da seleção brasileira de Tênis em Cadeira de Rodas, alcançando uma carreira repleta de conquistas e realizações”, relembra o top 10 mundial, o primeiro brasileiro a ficar entre os dez melhores do ranking na categoria.


O tênis em cadeira de rodas é dividido em duas classes: Open ou Aberta e Quad ou Tetra. Na Open, competem os atletas diagnosticados com deficiência permanente nos membros inferiores e movimentação normal nos braços. Já na Quad, os tenistas têm deficiências em três ou mais extremidades do corpo, ou seja, movimentos das pernas e braços limitados e dificuldades para segurar a raquete.


Ymanitu acaba de voltar de uma vitoriosa gira europeia. O paratenista conquistou o Vilamoura Open, em Portugal (no simples e nas duplas), o Kemal Sahin Open e o Sahin Kirbiyik Open, ambos na Turquia (também em simples e duplas), além do segundo lugar com a seleção brasileira de tênis em cadeira no BNP Paribas World Team Cup, classificando a equipe para o Mundial que será disputado em outubro, na Itália.



Ymanitu em ação no Circuito Mundial, em Portugal, esse ano


Mas nem tudo foram flores nas últimas semanas.


“Seriam nove torneios e nove semanas de preparação na Europa. Ficamos apenas quatro. Depois da Turquia, iríamos para Israel. Mas devido ao conflito na Faixa de Gaza o torneio foi suspenso. A parada seguinte seria a França, mas também fomos pegos de surpresa, porque os franceses exigem quarentena de dez dias para os que chegam da Turquia, devido à pandemia. Os custos ficaram muito altos e tivemos que voltar”, conta Many, que viajava também na companhia do atleta Daniel Rodrigues.


“Voltei para o Brasil preocupado em perder a vaga. Ainda faltavam dois campeonatos para fechar a classificação olímpica. Mas graças a Deus o ranking fechou no último dia 7 e consegui a vaga direta. O primeiro objetivo foi atingido”.


“Nos Jogos do Rio eu fiquei a um passo da medalha, parando nas quartas. Cheguei a ter no primeiro set um 5-4, 40 a 15, contra o então número 3 do mundo. Ele acabou virando, e perdi por 5-7, 3-6. No final do jogo, na rede, ele me confessou que se eu tivesse levado o set inicial teria vencido o duelo, porque a energia da torcida estava muito alta e não teria capacidade de reverter o resultado. Foi um momento muito especial na minha carreira, jogar em casa para um público de 8 mil pessoas me apoiando na quadra central, aplaudindo e gritando meu nome. Silva, Silva, Silva. Sem nunca terem me visto”, relembra com carinho.


Mais experiente e trabalhando para não se permitir deixar escapar jogos como este no Rio, Many mantém uma rotina de treinamentos diários alternando entre duas horas em quadra e mais uma de preparação física.


“Esses torneios foram importantes para identificar o que preciso melhorar até os Jogos. O nível está muito alto. Estamos estudando muito os possíveis adversários e creio que estou preparado para enfrentar verdadeiras batalhas nas quadras. Foi um ciclo de crescimento e evolução, e sinto que estou pronto pra tentar trazer a primeira medalha de tênis para o Brasil. Um sonho que se Deus quiser vou conseguir realizar”, conclui.


Hoje, e sempre


“O tênis é minha vida. A partir do momento em que fiquei tetraplégico e vi que dava para voltar a praticar o esporte que sempre fui apaixonado desde a infância, agarrei com força todas as oportunidades. Graças ao tênis em cadeira de rodas consegui realizar vários dos meus sonhos, viajei pelo mundo, conheci mais de 15 países, fazendo o que gosto. Realizei o sonho de jogar em Roland Garros, tendo o prazer de ter um ídolo na arquibancada torcendo por mim, o Guga. Foi sensacional. Sou muito grato ao tênis porque ele mudou minha vida e mostrou pra mim que para realizarmos nossos sonhos basta que lutemos por eles. Só depende da nossa vontade e de acreditar que é possível”.


Quando questionado sobre como encara a rotina de superação na busca por melhores resultados, Ymanitu destaca a diferente forma de tratamento entre esportistas olímpicos e paralímpicos. Para ele, o termo superação é uma qualidade que não se aplica apenas a competidores com deficiência e essa visão deve ser desvinculada como forma única de vitória para a categoria.



Ymanitu venceu torneios no tour e carimbou vaga em Tóquio


“Nós, deficientes físicos, gostamos de ser vistos como atletas de alto rendimento como também somos. Estamos na mesma luta que o Bruno Soares, o Marcelo Melo, o Thiago Monteiro, o João Menezes… Treino com a Carol Meligeni, e divido com ela a mesma rotina de treinos, as mesmas horas em quadra, o mesmo circuito mundial. Aqui ainda se bate muito na tecla da superação, o atleta paralímpico hoje ainda não é visto exatamente como um atleta, só enxergam a nossa deficiência”.


“Praticar esporte no nosso país é difícil, mas as coisas estão evoluindo. Nestes 14 anos de tênis profissional, vi que muita coisa melhorou de lá pra cá, mas ainda temos um longo caminho pela frente. Enquanto a deficiência física pode nos dar a sensação de que todas as portas nos foram fechadas, o esporte paralímpico pode nos trazer um mundo de sonhos e possibilidades”, conclui.


Créditos fotos: Ymanitu  Divulgação / Arquivo pessoal   |    Rejane  Agência de Notícias Uniceub / Arquivo pessoal


A pedido do atleta, divulgamos abaixo seu agradecimento a todos os colaboradores:


Patrocinadores  CBT, Comite Paraolímpico Brasileiro, Havan, Portobello, Da magrinha, Grupo Guga Kuerten, Fila, Bompack, Bolsa Atleta, Loterias Caixa.

Apoiadores  Tyyuco Imoveis, Agencia Iggy, IRG Tenis, Itamirim Clube de Campo, ADK Tennis.

Equipe técnica  Wanderson Cavalcante, Patricio Arnold, China e Carla de Pietro.


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